Monday, June 25, 2007

Marcas da infância

Eu nem sabia que São João era festa importante. Só sabia que era frio pra caramba, a gente usava uns três casacos de lã, luvas, touca... e em alguns casos, nem tirava o pijama com o qual dormíramos na noite anterior... simplesmente, ia enchendo de roupa "pra não pegar gripe" (era o que minha mãe dizia)...

Mas nessa época, minha mãe tinha a péssima mania de acordar cedo... (e de acordar todos da casa)...Quando não era minha mãe, era meu avô, que achava um absurdo uma pessoa continuar na cama depois das 8h da manhã...Em dias de semana (hoje) até entendo, afinal, eu sempre estudara no turno matutino. Então, de segunda à sexta eu tinha mesmo de acordar, no máximo, às seis da manhã...

Mas, e aos sábados e domingos?

Bom, aos sábados, eu era acordada sabe para quê? Para ir ao mercado... Incrível! Eu acho que passei a ser a responsável pelas compras de mercado aos oito anos de idade... Tá, pode ser exagero, mas posso jurar que aos 10 eu já fazia as compras da semana toda pra casa...E aos domingos? Acordavam-me para ir à missa... Detalhe: havia missa pela manhã e pela tarde (18h). Mas eu “tinha” de ir pela manhã. Como dizia minha mãe: “primeiro a obrigação, depois a diversão”.

Resumo da ópera: eu acordava cedo todos os dias da semana... Não havia escapatória...

Um frio de matar e minha mãe puxando os cobertores, abrindo as cortinas, as janelas... Fazendo o sol gelado entrar junto com o vento gelado no meu quarto mais gelado ainda... Perversidade...Eu me levantava, e esperava os dez minutos diários de espirros... Sim, por causa do jeito delicado que minha mãe me acordava, e sacudia os cobertores, minha rinite tomava conta de todo o meu ser. E eu ficava, sem brincadeira, uns dez minutos, sentada na cama, espirrando sem parar. Engraçado que ela dizia que sacudia cobertores e cortinas justamente pra não "ficar" pozinhos no meu quarto... (só depois quando eu já estava no auge da adolescência que Pedro Álvares Cabral descobriu o edredom, mas aí já é uma outra história)...

Bem, depois da sessão espirro, da sessão "limpeza bucal", na água congelante da pia do banheiro (naquela época não sei por que, mas fora os chuveiros, só havia água quente na torneira da pia da cozinha...)... Como eu ia dizendo, depois dos rituais matinais, eu tomava o café, enfiava goela abaixo os remédios pra gripe que minha mãe me obrigava a tomar, pingava descongestionante no nariz, e depois ia olhar o gramado, na esperança de que o pouco sol havia derretido o gelo da noite anterior...

Mas nada...

Tudo era branco... Gramado, telhado, bacias d’água... E algumas roupas que, esquecidas no varal, também estavam esbranquecidas, duras feito gelo...

Eu olhava minhas mãos... endurecidas, mesmo de luvas... a ponta do nariz gelada e vermelha, a rinite atacada, o vento cortante, os lábios rachados... Mas tudo bem... já que estava acordada e tinha um dia todo pela frente, lá ia eu pelas ruas,balançando a lista de compras e o cheque assinado (em branco!!! pelo meu avô)... brincando de escrever nas janelas de casa, nos vidros dos carros... fazendo desenhos no ar com a "fumaça" que saía da boca...

Depois que eu chegava do mercado, quase no final da manhã, eu vinha cheia de chocolates, iogurtes, pacotes de batatas-fritas, balas (claro, depois de tudo o que minha mãe fizera eu passar, eu tinha de ter alguma recompensa, não?... E então, ainda morrendo de frio (apesar das mil e duzentas blusas), ia tentar ver televisão embaixo de um cobertor e saborear minhas guloseimas... Mas aí o rapaz que trazia as compras chegava logo atrás e... pasme... minha mãe, enquanto ia descarregando as compras, ia descarregando palavrório em cima de minha pessoa...

Ela pegava o recibo que vinha junto com as compras e aí começava...

Era bronca porque eu havia comprado tanta “besteira que iria estragar meus dentes” e meu apetite, e que por isso eu era magricela e cheia de alergias... "Claro, só come besteira"...Depois ela emendava com as broncas porque o abacaxi estava verde, e que o coco não tinha água boa, e que a verdura estava murcha, e que a linha do “retrós” não era daquela cor e que o café não era daquela marca... Quantas vezes minha mãe me fez voltar ao mercado para trocar algum item que não estava de acordo com o que ela pedira... ai ai... até hoje me pergunto por que minha mãe não ia às compras, ela mesma... chuif... (acho que mereço indenização por exploração infantil)...

Meu avô chegava no meio da tarde de sábado, geralmente trazendo laranjas pra mim (pra menina não pegar gripe, dizia... A "menina" era eu...rs)... E trazia madeiras (sabe-se lá de onde) para fazer fogueira na frente de minha casa. E essas madeiras ficavam expostas no quintal até que alguém resolvesse acender a digníssima... Depois, ele ainda ficaria num ir e vir a tarde toda, ora trazendo, ora acompanhando alguém trazer engradados e mais engradados de bebidas, e quilos e mais quilos de carnes...

E minha mãe, uma pilha de nervos, sem saber o que fazer com tanta comida e onde colocar tanta bebida... Na verdade, acho que ela ficava era nervosa com tanta coisa para fazer, coitada, todo final de semana a casa cheia e ela responsável por tudo... Eu percebia o nervosismo de minha mãe e tratava logo de sumir, pra não sobrar pra mim...

No início da noite de sábado, chegavam meus tios, primos, vizinhos... Esse, para mim, era um dos momentos mais esperados de todos os meus sábados. Chegava a ficar horas parada à janela, aguardando o povo. E bastava um carro apontar na esquina que eu saía correndo e gritando feito louca: chegaram!!!! Eu nem sabia exatamente por que aquele povo todo estava lá em casa, mas sabia que era algo bom... E que eu e meus primos passaríamos um final de semana todo em volta de uma fogueira ou da churrasqueira comendo milho assado, espetinhos de carnes, batata-doce assada, canjica... ouvindo músicas, correndo, brincando, fazendo bagunça pela casa...

E que ficaríamos maravilhados com meu avô soltando rojões e outros tipos de fogos de artifício barulhentos...E era tanta brincadeira, tanta correria... E na euforia infantil, em êxtase mesmo, a gente chegava a sentir calor... E eu, com meus primos, naqueles nem sei quantos graus abaixo de zero, tirávamos as blusas de lã, os sapatos e corríamos pelo gramado congelante, só de camiseta e calça comprida...

Minha mãe, a essas alturas, à beira de um ataque epiléptico, mandando que eu colocasse blusa, mandando colocar remédio no nariz, passar "manteiga de cacau nos lábios...

Eu nem escutava... De longe, só ouvia uns murmúrios...vozes distantes, ora pedindo pra gente correr pra longe dos fogos, ora mandando a gente parar de correr, ora mandando a gente comer, ora mandando parar de comer, ora mandando brincar, ora mandando parar de brincar...Tudo muito difuso... Hoje imagino o que minha mãe passava... Mas naqueles instantes mágicos, "não parar" para escutar mãe fazia parte do "ritual do momento"...

Na minha cabeça de criança... nossa! Não haveria frio, nem nariz vermelho, nem lábios rachados, nem bronca ou reclamações de mãe, nem nada, nada que pudesse incomodar aquelas noites coloridas...Nem os resfriados constantes, ou as alergias das semanas posteriores...

Acordar cedo no dia seguinte? E daí?

Naqueles tempos... ah, naqueles tempos (frios) juninos, o que importava era o momento, era ser criança... e feliz!

(Adriana Luz - 25 de junho de 2007)

Thursday, June 07, 2007

Isso de vida própria...

Todo escritor (que se diz) costuma defender a tese de que em seu processo criativo, os personagens (criados por ele,obviamente) têm vida própria. Ou seja, eles (os personagens) é que comandam as mãos do escritor (que se diz).

Eu, como uma escritora (que me digo) também defendi essa tese por milênios. Mas estou pensando seriamente em mudar esse quadro. Não acho nada saudável um ser – criado – dominar o seu criador.

E também não acho nada confortável.

Onde já se viu, um personagem, nem bem saído das primeiras letrinhas, tomar as rédeas de sua existência e passar a infernizar a vida do escritor com a lei do livre arbítrio?

Comigo, inclusive, já aconteceu (e vive acontecendo) de eu mudar completamente o rumo de um texto ou de um personagem, sem nem eu mesma conseguir entender como isso se deu. Penso em escrever sobre as flores da estação e sai um texto sobre a bolsa que vi na vitrine. Em crise na bolsa e surge Chiclete com Banana. Em comercial de perfume e aparece crise no governo.

É... Não sei, só sei que foi assim...


Outro dia presenciei um desses embates. Um colega, companheiro de luta nessa arte de espancar teclados, às voltas com seu personagem. Este se recusava a fazer parte de uma história recém concebida.

O escritor (que se diz), empolgadíssimo, ávido por mudanças em todos os planos (de governo, de fuga, de tarifas zero...), tentava convencer seu personagem de que aquela não seria uma história qualquer. Aquela seria A HISTÓRIA – a que mudaria e resolveria todos os problemas da humanidade desde que o primeiro olhar de Adão deparou-se com a maçã de Eva (ou o olhar de Eva deparou-se com... enfim...).

Sim, o mundo seria dividido entre o antes e o depois de A HISTÓRIA.

Mas o embate prosseguia.

O escritor, empolgado! O personagem, estagnado. O escritor, ansioso. O personagem, imóvel. O escritor, agoniado. O personagem, impassível. O escritor, irritado. O personagem? Tsc. Quase um burro (marido da mula) empacado na beira de uma estrada! E esse foi o erro do escritor. Não deveria ter perdido o controle.
Essa frase comparativa dita a plenos pulmões mexeu deveras com os brios do personagem. Este, do nada, assumiu seu lado revolucionário e partiu pra guerrilha. Endureceu-se de verdade. Seu coração... nem quis saber do "sien perder la ternura" .

E passou a acusar o seu criador de abuso de poder, de invasão de privacidade, de desrespeito à liberdade de expressão, de tortura... a esfregar-lhe na cara que sabia muito bem os reais motivos para aquelas atitudes...

Sim. O personagem, ainda no processo embrional-mental do autor, presenciara tudo. O dia péssimo, a vontade que o escritor tivera (ao meio da tarde) de esganar meio mundo, de pedir demissão, de abandonar o lar, a família e... de fugir pro Nepal.

E assim, sem dó nem piedade, a criatura expunha todas as "podres e reais" intenções do pobre escritor.

E ainda dava-lhe de dedos!

Comigo não, chèrie - dizia! Nada de me usar para afogar suas mágoas ou tentar chegar ao topo de uma escada que não foi galgada (!) pela sua pessoa em anos de existência. Não admitirei ser usurpado por suas mãos (e pensamentos) egoístas!! E meu livre arbítrio, onde fica? Cadê os direitos humanos que não são respeitados nem na ficção? Cadê a Academia de Letras???? O Senado? O sindicato? A CUT? ... Enfim, cadê todo mundo? Olha que eu vou aos jornais, hein? E eu mesmo me publico! Aí quero ver a quem você irá explorar!!!

E assim seguia aquele bla bla bla sem fim...

O coitado do meu amigo, com uma mão na cabeça, a outra nas teclas de um computador adquirido na era jurássica, não sabia o que fazer.

Mas diante de tanto palavrório gritado bem fundo em sua mente, não havia outra alternativa a não ser libertar aquele protótipo de Che Guevara . E resolveu dar fim ao suplício. Libertou a criatura. E esta saiu por aí, livre, leve, solta e saltitante... ...

Quanto às idéias que ele tinha em mente, aquelas que resultariam em A HISTÓRIA... bom, estas foram por água abaixo! Sentindo-se um verdadeiro incompetente, recolheu-se à sua insignificância...

A vida própria daquele personagem acabara com a vida própria do escritor...

Adeus inspiração.

Muito triste isso.

(Adriana Luz – 06 de junho de 2007)

Sunday, June 03, 2007

Invasão de Privacidade

O que foi aquilo em seu olhar
alheio em minha vida
senão uma fotografia
sem registro
daquilo que sua mente fez
num instante
de relance
e captou sem nem perguntar
se o que acabara de ver
poderia ser enxergado??
O que foi aquilo em seu olhar
senão o registro
sob seu foco
de um eu que nem mesmo sei
se é substancial?
O que foi aquilo em seu olhar?
Um instante
Ou uma eternidade?

(Adriana Luz - 03 de junho de 2007)